quinta-feira, 13 de outubro de 2016

[Resenha com spoilers?] Um Cântico para Leibowitz


Título: Um Cântico para Leibowitz

Título Original: A Canticle for Leibowitz

Autor: Walter M. Miller Jr.

Editora: Aleph

Número de páginas: 400


Sinopse: Após ter sido quase aniquilada por um holocausto nuclear, a humanidade mergulha em desolação e obscurantismo. Os anos de loucura e violência que se seguiram ao Dilúvio de Fogo arrasaram o conhecimento acumulado por milênios. A ciência, causadora de todos os males, só encontrará abrigo na Ordem Albertina de São Leibowitz, cujos monges se dedicam a recolher e preservar os vestígios de uma cultura agora esquecida. Seiscentos anos depois da catástrofe, na aridez do deserto de Utah, o inusitado encontro de um jovem noviço com um velho peregrino guarda uma surpreendente descoberta, um elo frágil com o século 20. Cobrindo mil e oitocentos anos de história futura, "Um cântico para Leibowitz" narra a perturbadora epopeia de uma ordem religiosa para salvar o saber humano. Marco da literatura distópica e pós-apocalíptica, vencedor do prêmio Hugo de 1961, este clássico atemporal é considerado uma das obras de ficção científica mais importantes de seu tempo.


"Um Cântico para Leibowitz" é um exercício de imaginação extremamente fatalista mas que, talvez paradoxalmente, contém em si uma centelha de esperança com relação à natureza e ao destino inexorável da humanidade. Trata-se de uma obra onde o pessimismo e o otimismo permanecem em conflito permanente (conflito este que segue irresoluto), onde o futuro é ferramenta para discutir o presente e onde o destino é inevitavelmente catastrófico, porém, dotado de capacidades auto-regenerativas. 

A história do livro gira em torno da Ordem Albertina de São Leibowitz, uma ordenação cristã cujo principal objetivo consiste no resgate e preservação de todo o conhecimento humano que, após um holocausto nuclear cuja origem permanece desconhecida (mas que certamente constitui paralelo com a Guerra Fria), foi perdido ou "simplificado". Walter Miller Jr. descreve um cenário catastrófico sufocante, onde a população sobrevivente, enlouquecida por sua condição, acomete-se contra tudo aquilo que pudesse ser culpado pela morte do mundo, destruindo a maior parte do conhecimento e da tecnologia neste processo, além, é claro, das instituições, Estados e demais estruturas que mantinham aquela sociedade funcionando. Neste contexto de anomia, a sociedade humana retorna à pré-história, vivendo dos resquícios da antiga civilização assim como vermes vivem às custas de cadáveres, sendo a Igreja Católica o último baluarte das antigas tradições que conseguiu sobreviver (ao menos no espaço geográfico onde a história é narrada). Dividida em três partes, a obra narra uma época mais próxima do holocausto, onde há pouquíssimos assentamentos humanos e onde a Ordem de São Leibowitz (que ainda nem sequer foi propriamente canonizado), tem muitíssimos problemas para compreender qualquer conhecimento da antiga civilização. A segunda parte do livro mostra uma espécie de renascimento, onde a humanidade, ao passo em que atingiu um estado mais avançado de organização, onde a Igreja já alcançou maior nível de sofisticação intelectual, sofre com a ameaça dos grandes líderes militares que rondam a Terra à procura de poder. A última parte diz respeito a um futuro onde a humanidade já está profundamente desenvolvida e civilizada, onde os níveis tecnológicos superam em muito os nossos e onde a ameaça nuclear proporcionada pelos conflitos nacionais entre grandes potências mundiais volta à tona. É através desta conjuntura extremamente pessimista, onde a autodestruição aparece como principal chave do caráter cíclico da humanidade e, portanto, da história, que Walter Miller desenvolve os temas centrais de sua obra. 

Um dos pontos mais interessantes da narrativa é a maneira como, mesmo em meio a um contexto tão sombrio, o autor é capaz de desenvolver, especialmente no primeiro capítulo, uma narrativa divertida, onde o humor surge como resultado da ingenuidade do protagonista da primeira parte, Francis Gerard. Em grande parte, Francis representa o estado de consciência que a própria humanidade possui naquele momento: seu temperamento medroso, sua submissão canina ao seu abade, sua devoção tocante com seu trabalho em homenagem ao futuro São Leibowitz e, no final, sua morte insignificante para virar comida de canibais. Contudo, suas descobertas, ainda que acidentais, foram essenciais para a permanência da Ordem em sua tarefa de preservação da cultura humana, algo que ecoa por toda a obra e que não passa despercebido para os personagens da trama. 

A segunda parte do livro já começa de maneira chocante, uma vez que tira momentaneamente o foco da abadia para um assentamento militar onde somos expostos à triste realidade de que a natureza beligerante da humanidade pode a estar conduzindo rumo à autodestruição novamente. E do mesmo como a civilização parece "avançar" do ponto de vista organizacional, a Ordem monástica de São Leibowitz faz progressos expressivos com relação ao conhecimento humano, chegando ao ponto de produzir até mesmo um mecanismo elétrico, algo que parecia impossível frente à realidade de que todo o conhecimento referente àquilo havia sido perdido. Em muitos aspectos, este é o capítulo mais importante da obra, uma vez que estabelece o tom cíclico e fatalista que guiará a leitura até o terceiro capítulo, cujo desfecho, ainda que intrigante e extremamente bem elaborado, é bastante previsível. Nesta parte, vemos uma nova geração de intelectuais florescer, movida por ideais nobres de levar o conhecimento ao povo custe o que custar, de reerguer a civilização humana através da ciência, contudo, seus ideias empalidecem frente à necessidade do patrocínio dos poderosos governantes deste novo mundo, cujas intenções não passam nem perto da nobreza de seus intelectuais. Trata-se de um paralelo muito claro com os grandes cientistas dos séculos XIX e XX, os quais tiveram seus trabalhos apropriados pelos projetos armamentistas das grandes potências políticas da época, culminando no histórico ataque americano à Hiroshima e Nagasaki, o maior ataque terrorista da história da humanidade. Walter Miller reconhece o valor da ciência, sua importância para o melhoramento da vida humana, contudo, alerta para os perigos do conhecimento científico levado à frente sem escrúpulos, sem um senso de moral e ética bem estabelecidos, vendo na igreja uma maneira de se manter a ciência longe dos poderes soberanos (voltaremos a este ponto em breve). 

A última parte, conforme já dito, é a mais previsível da obra, uma vez que o destina da humanidade já foi declarado nos capítulos anteriores. No entanto, passa longe de ser descartável, visto que aprofunda ainda mais a crítica do autor às relações internacionais de seu tempo. Somos levados a um futuro onde o desenvolvimento humano superou o nosso, não obstante, carros que se guiam sozinhos e sistemas capazes de traduzir e imprimir aquilo que está sendo ditado por seu usuário simultaneamente, são incapazes de impedir a "necessidade" humana de destruir sua própria civilização. Vemos novos Estados, que se assemelham muito aos nossos, em um constante processo de guerra absurda e irracional: todas as potências tem plena consciência de que suas armas destruirão o mundo, e os motivos da guerra junto com ele, mas isso não as impede de prosseguir com os ataques. E é um ataque nuclear que acaba destruindo novamente o mundo, levantando as cinzas do inverno nuclear sobre a terra novamente e mergulhando a humanidade em mais alguns milênios de ignorância e reconstrução. O fogo atômico também parece purificar (do ponto de vista cristão) a humanidade: uma cabeça inanimada que nasceu no ombro de uma mulher, fruto de uma mutação genética proveniente do primeiro Dilúvio de Chamas, toma consciência no último capítulo do livro ao passo em que sua cabeça original, a senhora Griles, balança morta em seu ombro. Este evento absurdo e profundamente perturbador carrega uma metáfora interessantíssima e que marca o recomeço da humanidade: a nova dona do corpo de senhora Griles recusa o batismo que um monge caído aos seus pés lhe oferece e seus últimos suspiros, dando a entender que aquela nova "face" da humanidade nasceu sem o pecado original, marcando a nova gênese, uma nova Eva. 

O livro é marcado por simbologias religiosas e o conhecimento do autor com referência a este tema é de extrema importância para a leitura, uma vez que a riqueza de detalhes e a maneira suave com a qual o autor vai introduzindo cada novo conceito confere peso e sabor ao livro. E o autor, um homem profundamente religioso, vê na instituição da igreja uma maneira de dissociar o conhecimento científico dos interesses mesquinhos dos poderes soberanos e de guiar o desenvolvimento científico através de princípios éticos e morais claros e voltados ao bem estar comum. É desnecessário apontar os pontos em que esta fé na religião torna-se problemática (especialmente no que diz respeito à acessibilidade dos meios científicos para praticantes de outras religiões, por exemplo), no entanto, a crítica permanece forte até hoje, visto que o desenvolvimento científico permanece, mais do que nunca, sob o controle comercial voltado ao lucro puro o que, ao passo em que proporciona "evoluções" em ritmo industrial, também concede um ambiente sem nenhum controle de senso comum. É importante dizer que o próprio autor não é tão ingênuo com respeito à Igreja, deixando claro em vários momentos que a fé pode representar um obstáculo para a ciência. Atualmente há mais armas nucleares do que já existiu na história da humanidade e, por mais que esses problemas não sejam abordados pela grande mídia e que o grande medo do fim do mundo tenha acabado, ainda é necessário ter consciência de que a ciência, ainda que crucial para nosso desenvolvimento, carrega perigos que nem o capital nem os Estados ainda foram capazes de conter. 

O estilo do autor é bastante confortável, sem linguagem muito rebuscada e sem grandes ambições estilísticas, assim como a maioria dos autores estadunidenses. O principal foco do autor é sua analogia e isso ele é capaz de concretizar com elegância e segurança. Não há pressa na argumentação, o que alguns leitores talvez compreendam como algo maçante, porém, os momentos mais "arrastados" do livro são aqueles em que o universo está sendo desenvolvido, concedendo importância e peso até mesmo aos momentos menos agradáveis da obra. Além disso, o humor presente na obra é bem aguçado e evolui de natureza ao longo da obra, tornando-se menos ingênuo e mais sombrio ao passo em que a história prossegue. E este tom sombrio acaba sendo quebrado com a esperança surpreendente do autor ao final do livro. O conhecimento acumulado pela Ordem Albertina de São Leibowitz não é destruído com a terra: os monges conseguem colocar toda a "Memorabilia" em uma nave espacial e alçar voo à procura de novos mundos, onde a ciência poderia se desenvolver sem os entraves do "pecado". Trata-se de um momento um tanto dúbio na obra, visto que pode ser interpretado como a remoção da ciência da humanidade seja a única maneira de se manter a raça humana longe do pecado, mas que também pode ser visto como um relance de esperança, onde a raça humana só necessitaria de uma folha em branco para escrever uma história menos catastrófica. 

"Um Cântico para Leibowitz" é uma obra extremamente atual e que fala sobre elementos de nossa história com os quais todos conseguimos nos identificar. O fim do mundo nunca esteve tão próximo quanto está atualmente e é impossível não olhar para a conjuntura global sem questionar como nossa raça pode ter sido tão ingênua a ponto de permitir que as coisas chegassem ao ponto onde estão. Walter Miller Jr. compõe um universo cuja construção parece extremamente plausível e cujo desfecho se desenvolve de maneira previsível. Temos aqui uma obra que vira nossos olhos a uma das realidades dolorosas de nossa existência, algo que tentamos ignorar a fim de viver nossas vidas normalmente, o que deve ser o principal motivo pelo qual as coisas estão como estão. "Um Cântico para Leibowitz" é um ponto de reflexão filosófica profunda e entretenimento puro, tornando-o acessível a todos os gostos e representando o que de melhor a humanidade pode produzir neste mundo que pertence aos abutres.

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