quarta-feira, 19 de julho de 2017

[Resenha] Ciclo Terramar #2: As Tumbas de Atuan

“[...] A liberdade é um fardo pesado e uma carga enorme e estranha para o espírito carregar. Não é fácil. Não é um presente dado, mas uma escolha que se faz, e a escolha pode ser difícil. A estrada sobe em direção à luz, mas o viajante sobrecarregado pode nunca chegar a seu fim.” (Página 143)



Como não rasgar ceda para essa autora maravilhosa que conquistou o coração de todos os – preparem-se para o incrível número de: dois redatores deste blog? Como não reverenciar alguém que confere uma voz nova para um gênero tão batido quanto fantasia medieval? – bônus para o fato de ser um livro jovem adulto. É difícil evitar cair nas armadilhas que o amor precedente pela Ursula oferecem à análise do livro quando se está falando de uma autora cuja obra é tão sólida, original, desafiadora e sensacional. Mas dificuldade nenhuma é demais para a fênix, que sempre ressurge das cinzas com energia renovada (melhor partir logo para a resenha antes que este texto também vire uma fantasia medieval).

“As Tumbas de Atuan” é o segundo volume da série “Ciclo Terramar”, a qual já teve seu primeiro volume, O Feiticeiro de Terramar resenhado por esta que vos escreve (é LICENÇA POÉTICA) aqui neste mesmo blog – vá lá ler, seu porra :)

Tenar é apenas uma criança de cinco anos quando é tirada dos pais para ser a Sacerdotisa das Tumbas de Atuan, nas distantes e bárbaras Terras de Kargard. Agora, ela é a devorada, alguém capaz de adentrar o domínio dos Inominados (seres que o nosso amigo Ged conhece bem). Ela perdeu o nome quando era apenas uma criança e passou a responder como Arha – nome adotado por todas as Sacerdotisas de Atuan. Porém, em meio a escuridão, será que Tenar terá coragem o suficiente para abrir as cortinas e descobrir o que espreita na escuridão?


“Que os Inominados contemplem a menina que lhes é oferecida, ela que é, verdadeiramente, a que nasceu para sempre sem nome. Que dela aceitem a vida e os anos de vida, até sua morte, que também pertence a eles. Que a considerem aceitável. Que ela seja devorada!” (Página 17)

Todos os livros do “Ciclo Terramar” podem ser lidos independentemente, porém ao pular um volume, você acaba perdendo bastante da construção de mundo e da bagagem dos personagens. Então, eu aconselho fortemente que você largue essa preguiça e vá ler estes livros logo – não quero ouvir desculpas, eles têm menos de 200 páginas...

Mas afinal, porque vale a pena dar atenção a essa série? Assim como no excelente A Mão Esquerda da Escuridão – que possui resenha no blog escrita por um certo bode canhoto – o que gera fascínio nessa obra é a capacidade que a autora tem de criar um universo absolutamente magnífico, cheio de possibilidades e dotado de uma característica empolgante que só posso definir como “magia”, e fazer com que esse mundo fenomenal, que em qualquer outra obra seria o foco da história, seja apenas um plano de fundo, tamanha é a profundidade dos personagens. Os livros da mamma Ursula são guiados pelos personagens, e não pela história em si, o que nos fisga são seus dramas, suas dúvidas, os obstáculos que tem de superar e, mais importante, a maneira como solucionam os problemas.

“[...] A Terra é linda e luminosa e bondosa, porém não é só isto. A Terra também é terrível e obscura e cruel. O coelho grita ao morrer nas campinas verdes. As montanhas cerram suas mãos enormes, cheias de fogo oculto. Há tubarões no mar e há crueldade nos olhos dos homens. E, quando os homens cultuam essas coisas e se humilham diante delas, é aí que o mal se reproduz. É aí que se criam lugares no mundo em que as trevas se acumulam, lugares inteiramente dedicados àqueles que chamamos de Inominados, os Poderes antigos e sagrados da Terra da Luz, os poderes da escuridão, da ruína, da loucura...” (Página 108)


A questão central aqui é, e não quero ser presunçosa quando afirmo categoricamente que qualquer autor comercial que se proponha a escrever fantasia “capa e espada” tem algo a aprender com essa incrível obra de Le Guin, é que ninguém se importa com as montanhas congeladas do norte ou com as fortalezas perdidas dos reinos distantes da putaquepariu, o que chama atenção dos leitores são os habitantes desse mundo e a maneira como os protagonistas superam suas dificuldades. Afinal, ninguém quer ler um livro onde só são descritos os cenários e nada acontece. Porém, não é incomum encontrar nesse gênero livros que focam na geografia e esquecem do fator mais importante da coisa toda: a humanidade. E isso, “Ciclo Terramar” tem de sobra – fora o cenário que é perfeito. Para resumir, Ursula Le Guin lacrou.

Uma jornada concisa, personagens bem estruturados que tomam atitudes condizentes com sua construção, arcos dramáticos bem estabelecidos e desfechos que, embora possam vir a decepcionar alguns, estão de acordo com a filosofia geral da obra.

Novamente, surgem referências à filosofia oriental, algo que parece ser tão estimado pela a autora, que também deixa sua apreciação transparecer em seus trabalhos de ficção científica. Embora seja absolutamente batido dizer isso, e embora muitos autores tenham levado esse artifício para o lado negro da força, usando-a como desculpa para não escrever um desfecho apropriado para suas histórias, o mais importante em “Ciclo Terramar” é a jornada, e não seu desfecho. A jornada nos transforma, porém, assim como na vida real, não é só porque ela acabou que nossa vida acabou. A obra de Le Guin é tão bem estruturada que acreditamos nela do começo ao fim.


Tanto Tenar quanto Ged precisavam trilhar uma jornada de auto-descobrimento. Ged precisou aprender – de uma forma bem dura – que ele era muito imaturo e arrogante para se aventurar por magias mais avançadas, que ele não era indestrutível e onipotente. Enquanto Tenar precisou acreditar nela mesma e se libertar. Tanto física, quanto metaforicamente.

“E este é só o começo da história. Você deve ser Arha ou deve ser Tenar. Não pode ser as duas.” (Página 114)

Ouvi algumas pessoas dizerem que a história perdeu um pouco de seu dinamismo e aprofundamento tão presentes no primeiro volume. Porém, precisamos enxergar esta história por outro ângulo. Ged e Tenar são completamente diferentes. Ela, carece independência e, de certa forma, personalidade. Enquanto Ged pecava pelo excesso e sede de poder. A vida dela era apenas Atuan, enquanto Ged queria o mundo.

“Para renascer, é preciso morrer, Tenar. Não é tão difícil quanto parece, visto do outro lado.” (Página 115)

A narrativa é mais lenda pois o foco é outro, não vamos acompanhar um jovem aprendiz em uma jornada em busca de redenção, aqui temos uma jornada mais introspectiva. Há uma maior atenção aos pequenos detalhes, até que Tenar passe a notar a presença de algo cheirando mal em Atuan. E, depois que isso acontece, a narrativa vai de 0km/h a 100km/h em segundos, e nossos corações batem mais forte até a última linha.


Quando abrimos um livro de Ursula K. Le Guin, passamos a acreditar e cada palavra que está escrita, e só voltamos ao mundo real depois de fechá-lo. Onde esperamos ansiosamente, a próxima jornada começar.

Autora: Ursula K. Le Guin
Editora: Arqueiro
Número de páginas: 160
Classificação: ★★★★★/✰✰✰✰✰

*Livro cedido em parceria pela editora*

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