sexta-feira, 7 de julho de 2017

[Resenha] Scythe #1: O Ceifador

“A imortalidade não pode amenizar a loucura ou a fragilidade dos jovens. A inocência está fadada a uma morte absurda por nossas próprias mãos, uma vítima dos erros que nunca podemos corrigir. Assim enterramos o deslumbramento ingênuo com que um dia vivemos, substituindo-o por cicatrizes das quais nunca falamos, tão profundas que nenhuma tecnologia é capaz de curar.” (Página 380)


Um mundo onde ninguém mais pode morrer, nem mesmo que queira, já que as pessoas podem ser revividas – claro, pelo preço certo. Como controlar a super população em tempos de pós mortalidade, onde o que mais almejávamos se tornou nossa própria danação?

“Antes, o fim da vida humana ficava nas mãos da natureza. Mas nós a roubamos. Agora temos o monopólio da morte. Somos seu único fornecedor.” (Página 16)

É engraçado e deprimente como o mundo se tornou um lugar entorpecido, pelo menos até que um ceifador apareça para a coleta. O desejo em descobrir o desconhecido não existe mais – agora que tudo o que deveria ser descoberto já foi, graças a Nimbo-Cúmulo (tipo uma evolução da nuvem). As pessoas não têm mais o que fazer com as próprias vidas, então um, dez, cem anos passam sem marcar a vida de ninguém. Eles têm todo o tempo do mundo para nada...

“Quanto mais vivemos, mais rápido os dias parecem passar. Como é perturbador viver para sempre. Um ano parece durar apenas semanas. Décadas voam sem nenhum acontecimento que as marque. Ficamos acomodados na monotonia sem sentido da vida, até que, de repente, nos encaramos no espelho e vemos um rosto que mal reconhecemos implorando que nos restauremos e sejamos jovens novamente.” (Página 384)


Mesmo sem nenhuma aspiração ou sonho, elas ainda temem a morte. Uma vez li em algum lugar que temer a morte é o que faz com que vivamos a nossa vida plenamente. Se isso fosse retirado, seríamos cascas vazias ocupando nosso tempo com coisas que não nos importamos realmente, já que tudo perdeu a cor e agora vivemos em mundo monocromático.

“Será que já tivemos algum inimigo pior do que nós mesmos? Na Era da Mortalidade, guerreávamos incessantemente uns contra os outros e, quando não havia nenhuma guerra a travar, espancávamos uns aos outros nas ruas, escolas e casas até a guerra nos fazer voltar nossos olhos para fora, afastando o inimigo para uma distância mais confortável.” (Página 443)

Se parecer estranho, pensem o seguinte: é como jogar um jogo e ao invés de trilhar todo um caminho você usasse códigos que te tornassem invencível. Claro, em um primeiro momento ser invencível é maravilhoso, mas isso só acontece porque você conhece a aflição da morte, você a teme e o simples fato de a ter “vencido” torna tudo excitante. Algum tempo depois, essa euforia se transforma em tédio, já que tudo está ao alcance dos seus dedos e você tem todo o tempo do mundo. A “vida” perdeu a graça.

Coloquem anos nessa condição e acrescentem o fato de todo conhecimento estar disponível para qualquer pessoa que o busque. Seres humanos precisam de “metas”, coisas para descobrir. Nós também precisamos saber que temos prazo de validade e que não somos invencíveis. Retirar a mortalidade de alguém, em longo prazo, faz com que essa pessoa entre em um estado de depressão e automatização da vida. Acordamos, tomamos café, vamos trabalhar, chegamos em casa, vamos dormir. Repete, repete, repete.


“- Eles tinham uma palavra para isso: “homicídio”.
Citra riu daquele termo arcaico.
- Que engraçado. Parece um homenzinho.” (Página 202)

É estranho pensar que no dia em que não houver mais como progredir, já que temos a resposta para tudo – inclusive uma maneira de driblar a morte – nós iremos nos tornar escravos de uma rotina que destruirá o que significa ser humano. Seres vivos precisam nascer, crescer e morrer. Essa é a lei natural das coisas, por mais dura que essa verdade possa ser (se você se interessa por esse tema – e pretende morrer algum dia – recomendo a leitura de “Confissões do Crematório” da sensacional Caitlin Doughty).

“O mundo tende a recompensar com fama o mau comportamento.” (Página 278)

Em “O Ceifador” nos vemos em uma sociedade imortal e, em parte, entorpecida. Se não fosse o trabalho dos Ceifadores – agentes da ordem da Ceifa – a civilização já teria entrado em colapso há muitos anos atrás, seja por falta de recursos ou pela superpopulação.

“[...] o ceifador é apenas o instrumento da morte, mas é a mão de vocês que me move. São vocês, seus pais e todas as outras pessoas neste mundo que controlam os ceifadores. [...] Somos todos cúmplices. Vocês precisam dividir essa responsabilidade.” (Página 15)

Rowan e Citra  são os protagonistas e não poderiam ser mais diferentes – aliás, se você é fã de narrativas alternadas entre personagens, aqui está mais um motivo para ler este livro. Citra é a filha mais velha de um casal amoroso, que se importa com ela. Já Rowan passa despercebido por sua grande família – atribuindo a si mesmo, após uma sugestão de um amigo, o apelido de alface. Afinal quem vai querer a alface quando se tem carnes e queijos? Rowan quer chamar a atenção dos pais. Mesmo que isso envolva pular do 9º andar de um prédio – não que isso fosse matá-lo, afinal de contas a revivificação está sempre disponível.


“A sarjeta é o ponto de partida para muitas realizações. Pode ser o início de uma jornada transformadora.” (Página 344)

Por outro lado, Citra quer fechar os olhos para tudo que grite na sua cara que seres humanos não são imortais, afinal de contas é bem cruel deixar que um Ceifador decida quem vive e quem morre, não é? Ela é a garota exemplar que tem um forte senso de moralidade, enquanto Rowan é alguém que parece não existir.

O destino desses dois personagens se cruza após o encontro com um dos Ceifadores mais antigos e renomados: o ceifador Faraday. Ele tomará os dois como aprendizes, sendo que no final desse período de aprendizado, apenas um será escolhido e se tornará Ceifador.

“Passou pela sua mente a idéia de que ser uma ceifadora era como ser uma morta-viva. Estaria no mundo, mas à parte dele. Apenas uma testemunha das idas e vindas dos outros.” (Página 49)

A premissa desse livro é fantástica. Imaginem um mundo onde ninguém mais morre já que uma entidade quase onipresente conseguiu erradicar todas as doenças e chegou ao extremo de conseguir reviver uma pessoa, mesmo que ela tenha virado patê, ao cair do 15º andar de um prédio. Obviamente, uma utopia não existe. Junto à “descoberta” da imortalidade, criamos outros problemas para nos assombrar...

Me surpreendi demais com esse livro. Apesar de ser um livro jovem adulto (o que normalmente torce narizes, por tratar de temas adolescentes levianos como o primeiro amor, a necessidade da tomada de decisões, a nostalgia da infância e etc), as questões tratadas aqui são muito mais profundas. Quem julga aqueles que decidem quem vive e quem morre? Como nomear Ceifadores? O que é necessário para se tornar um deles? Quem decide o que é certo ou errado? O que é moral e ética?

“Somos instruídos a anotar não apenas nossos atos, mas também nossos sentimentos, porque deve-se saber que temos sentimentos. Remorso. Arrependimento. Sofrimentos grandes demais para suportarmos. Porque, se não sentíssemos nada, que espécie de monstros seríamos?” (Página 4)


Neal Shusterman conseguiu criar uma narrativa simples, com uma temática pouco convencional que fosse convincente e que fizesse sentido. Além disso, ele cria personagens que são responsáveis por invocar emoções fortes, tanto positivas quanto negativas.

“Sou a faca movida por sua mão,
cortando um arco-íris reluzente.
Sou o badalo, mas você é o sino,
tocando na escuridão crescente.
Se você é um cantor, sou a canção,
uma trenodia, um réquiem, uma canção fatal.
Você me tornou a resposta às necessidades do mundo,
a premência da humanidade imortal.” (Página 424)

Apesar do receio que é começar um livro YA de distopia – a famigerada distopia. A protagonista da enxurrada dos clichês de alguns anos atrás, que insiste em voltar sempre que aparece uma oportunidade – “O Ceifador” inova e entrega uma narrativa fluida, envolvente, lotada de plot twists e revelações bombásticas que passam bem longe dos clichês que são tão recorrentes no gênero.

“Ele me lembra que, apesar dos ideais grandiosos e das muitas defesas para proteger a Ceifa da corrupção e perversão, devemos estar sempre atentos, pois o poder vem infectado com a única doença que nos resta: a natureza humana. Temo por todos nós se os ceifadores começarem a amar o que fazem.” (Página 98)

Eu definitivamente quero conhecer mais sobre a escrita de Neal Shusterman. Pretendo ler Fragmentados, enquanto o segundo volume de “Schythe”, Thunderhead não chega (estréia prevista para o primeiro semestre de 2018 nos Estados Unidos). Vamos orar para que ele não pare de escrever tão cedo, e que estes livros sejam apenas os primeiros de muitos a ainda serem publicados.

Autor: Neal Shusterman
Editora: Seguinte
Número de páginas: 448
Classificação: ★★★★★♥/✰✰✰✰✰

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