quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

[Resenha] Kindred - Laços de Sangue

“[...] A dor era uma amiga. A dor nunca tinha sido minha amiga antes, mas agora, ela me mantinha parada. Ela forçava a realidade em mim e me mantinha sã.” (Página 183)



“Kindred” é um livro sobre o poder que que uns acreditam ter sobre outros.

Octavia E. Butler foi a primeira mulher negra a ganhar um prêmio de ficção científica. Apesar do preconceito e do menosprezo, ela se tornou a “Grande Dama da Ficção Científica” e até 2017 nunca tinha sido publicada no Brasil. Devemos agradecer eternamente a editora Morro Branco por inovar e abrir as portas para alguém tão fenomenal quanto Octavia. 

“Kindred” é um livro difícil de engolir em alguns momentos. Não devido a problemas em sua narrativa ou no enredo, mas pela realidade por trás de suas palavras. Os eventos narrados doem. É difícil ler suas páginas sem pensar que tudo isso já aconteceu milhares de vezes a tantas pessoas ao decorrer dos anos. Tenho nojo de pensar que ainda vivemos nas trevas, onde a cor da pele de alguém ou seu sexo automaticamente a exclui e coloca em alvo em suas costas.


“Talvez você tenha razão. Espero que tenha. Talvez eu seja só como uma vítima de roubo, estupro ou algo assim… Uma vítima que sobrevive, mas não se sente mais segura. Não sei explicar o que aconteceu comigo, mas não me sinto mais segura.” (Página 28)

Dizer que esse livro começa sem rodeios é um eufemismo. Temos uma introdução que já dá o tom da obra, apesar de quase não revelar nada. Posso dizer que essa é uma das melhores introduções que eu já li - aliás, se você ainda está em dúvida se deve ou não ler este livro, te aconselho a ler a primeira página.

O ano é 1976, Dana e Kevin são casados e acabaram de se mudar para uma nova casa. Em meio a abertura das caixas, Dana começa a sentir tonturas, náuseas, a visão embaçada e derrepente tudo fica preto. Quando ela abre os olhos, está em um ambiente completamente diferente. Ela está ajoelhada em uma floresta, ao lado de um rio, em que um menino está se afogando. Imediatamente ela pula na água e salva o menino, ignorando os gritos histéricos de sua mãe e, posteriormente, a espingarda do pai apontada para sua cabeça. Num piscar de olhos ela está de volta a sala de sua casa. O que aconteceu? Quem eram aquelas pessoas? Porque elas se vestiam e falavam de modo peculiar?


Dana a princípio não sabe a resposta para nenhuma dessas perguntas. Porém, conforme ela volta a ser chamada para aquele misterioso cenário, certas portas vão sendo abertas e ela compreende que viaja no tempo, para o sul dos Estados Unidos do século XIX. Aterrorizante? Com certeza. Ainda mais se você é uma mulher negra do século XX. 

“Já tinha visto pessoas serem surradas na televisão e nos filmes. Já tinha visto sangue falso nas costas delas e ouvido gritos bem ensaiados. Mas não havia ficado perto e sentido o cheiro do suor nem ouvido as súplicas e as orações das pessoas humilhadas diante de suas famílias e de si mesmas. Eu provavelmente estava menos preparada para a realidade do que a criança que chorava não muito longe de mim. Na verdade, ela e eu estávamos reagindo de modo muito parecido. Meu rosto estava banhado em lágrimas. E minha mente ia de um pensamento a outro, tentando me desligar das chibatadas.” (Página 59)


Em meio as suas viagens ela precisa lutar por ela mesma e, no lugar de uma personagem que já era forte por saber o que ela queria, surge alguém de aço. Dana é arrancada de seu lar e conforto e é obrigada a aprender a usar suas próprias armas e estratégias para garantir o dia de amanhã enquanto fecha os olhos para tantas injustiças. É impossível não se arrepiar ao ler as descrições hiperrealistas de Octavia, assim como também é impossível não terminar esta fantástica obra sem um gosto amargo na boca. 


Fico sem palavras ao finalmente abrir meus olhos para Octavia E. Butler e saber que este livro foi publicado tantos anos atrás sem nenhuma edição publicada no Brasil. Fico muito feliz em saber que a editora Morro Branco tomou esse primeiro passo e se atreveu (afinal o mundo é muito preconceituoso) e trouxe a grande dama da ficção científica até nós. 

Dado o tom da obra, não vá ler esperando uma narrativa otimista e com final feliz. Porém, também não pense que “Kindred” é composto apenas de tragédias. Este é um livro completo: vivi o drama dos personagens, comemorei os momentos felizes com eles e senti cada açoite, e este é o poder de Octavia: de nos transportar para dentro do livro.

“Ela qué dizê que não sai, Dana [...] A pele negra. Ela qué dizê que ocê deve mandá pro inferno as pessoa que diz que ocê é algo que não é.” (Página 358)


A sensação que eu tive era de ter ficado presa no século XIX e sentir cada dia passando sem esperança de voltar ao meu lar. Senti o peso das responsabilidades de Dana, assim como seu desespero em estar de mãos atadas. Minha vida mudou depois de terminar “Kindred” e “voltar para casa”. É como se eu vivesse uma vida de ignorância e ingenuidade e de repente meus olhos fossem abertos. Apesar de me sentir aliviada ao sair da névoa segura da ignorância, sei que nada nunca mais voltaria a ser como era antes - encarem como uma versão mais hardcore de amadurecer.


“Kindred” é uma história sobre opressão, auto descobrimento, perseverança, esperança, preconceito, superação e principalmente sobrevivência. É uma leitura obrigatória, já que se mais pessoas tivessem lido estas páginas, quem sabe teríamos um cenário diferente em nossas mãos…

Autora: Octavia E. Butler
Editora: Morro Branco
Número de páginas: 432
Classificação: ★★★★★♥/✰✰✰✰✰

Nenhum comentário:

Postar um comentário